Meras palavras sobre um lance visual
Diante de tanta miséria crítica, às vezes é necessário ao artista fazer as vezes de comentador do próprio trabalho. Aconteceu em todo o modernismo (que, por sinal, ainda não passou), quando público e especialistas foram pegos de calças na mão. Bom, a ação (não me atreveria a falar em ‘obra’) que vim comentar não é nada demais, e eu nem mesmo saberia precisar sua importância, mas que merece menção nesse mar de marasmo, merece. Uma pequena jogada visual. Tudo começou quando decidi incluir o pintor e amigo Cícero Matos no pós-lida essencial de hum/ano. Cícero iria lá para pintar. Ele, que vai do batik às geladeiras, propôs pintar uma tela mesmo quieto no seu canto de pássaro selvagem. Achei pouco. E aproveitei a ocasião para interferir (sem discutir) em toda essa discussão ainda vigente sobre a morte da pintura, ‘teatro-boate-cinema...’ resolvi então misturar as coisas, mas de um modo que, no final, tudo pudesse voltar aos seus (in)devidos lugares. Como no recital costumamos usar uma tela para projetar as imagens dos convidados e outras coisas, quis eu que aquela fosse então a mesma tela da pintura. Nada no canto. Conversei com Cícero e o pedi que usasse uma roupa branca, já que parte da projeção acabaria esbarrando nele e nem chegado à tela: constelando o pintor. Mas isso dependeria também do movimento do artista, que por sua vez seria determinado pela pintura (pela ação de pintar e pelo que o quadro pedia). Ou seja, às vezes uma imagem que estava em sua cabeça podia passar para o braço ou ainda se acomodar suavemente na tela onde sangravam as pinceladas e depois voltar ao início. Etc. Se isso influenciaria a criação, não sei. E de fato pouco me interessa.
Alguém ainda se lembra daquela declaração de Man Ray? Tome: “Comecei minha carreira como pintor. Ao fotografar minhas telas, percebi o interesse de sua reprodução em preto e branco. Um dia, cheguei a destruir o original para ficar somente com a reprodução. Desde então, passei a acreditar que a pintura tornou-se uma forma de expressão ultrapassada e que a fotografia iria destroná-la quando o público fosse educado visualmente... Só tenho certeza de uma coisa – preciso experimentar, com uma forma ou outra. A fotografia me fornece meios para isso, meios mais simples e ágeis que a pintura”. Depois viu-se que a coisa não era tão simples assim. Enfim, meus planos incluíam também as duas formas de expressão que vieram para matar a pintura: fotografia e cinema (no caso, vídeo – que veio para matar o cinema). Chamei a fotógrafa Amana Dultra e o vídeomaker Matheus Pirajá e lhes pedi atenção especial ao ‘evento’ projeção+pintura+camisa-corpo em seus registros. E, mesmo as pessoas presentes com quem não conversei sacaram na hora o que se dava e trataram de registrar o lance com suas portáteis. Os diversos resultados, não sendo mais que o que são (vídeo-vídeo, foto-foto, projeção-projeção e pintura-pintura) acabam inevitavelmente se contaminando com as outras formas e falando mais que mil palavras em todo aquele bafafá teórico. E tudo dentro da mais pura representatividade, o que me agrada especialmente. E, além do além, tudo banalizado pela internet, que é o fim de todas as eras e o encontro de todas elas.
Outra coisa ainda, no que diz respeito à autoria. Vocês já sabem que a palavra tem que ver com autoridade né? Senão vejamos: "A palavra 'autor' deriva do latim auctor, que, por sua vez, deriva, através de uma cadeia linguística, de uma palavra que significa aumentar ou desenvolver. Auctor significa alguém que dá origem ou promove e não uma pessoa cuja palavra se tornou canônica. Autoridade e autor têm a mesma raiz e as práticas medievais davam-lhes um sentido idêntico". Pois assim sendo, mesmo as fotos sendo de Amana (ou Luna ou Alessandra) e o vídeo de Pirajá e o quadro de Cícero e a projeção do Skype, sinto-me autorizado a reivindicar autoria no lance. Quando vejo as imagens de Rennó meio dentro de sua cozinha meio no meio do rol das baianas de Cícero; Ou a sombra do pintor fazendo em preto um espaço em branco de alguma imagem; Ou ainda o batmakumba escrito por trás e por cima das macumbeiras (seriam macumbeiras?); Ou ainda outra vez quando tive o ímpeto de juntar a capa que Dicinho fez para Gal com lápis-aquarela e a recente tela... Sinto-me contente por ter atiçado (criado) um lance legal no campo da “inelutável modalidade do visível”, como diria meu xará James Joyce. E note-se que tudo foi feito sem levar em consideração as imagens da projeção (inclusive muita coisa era 'ao vivo'). Ou seja, podemos ter vários outros resultados com escolha mais elaborada. E outras aplicações. Exemplo: um pintor que pinte exatamente o que está sendo projetado, dentro da sua linguagem própria, e tendo apenas o tempo da projeção, que pode inclusive ser cronometrado. Ao final da tela começa-se outra. E no final de tudo fazemos um leilão dos instantâneos. Sim, pode ser das fotos.
Mas eu falei em James Joyce. Gosto sempre de lembrar o compadre. E é sempre oportuno. Mas desta vez acho que o trecho inteiro donde retirei a frase citada cai como uma luva em nossas chuteiras. "Inelutável modalidade do visível: pelo menos isso se não mais, pensado através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen e maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo, carcoma: signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles corpos antes deles coloridos. Como? Batendo com sua cachola contra eles, com os diabos. Devagar. Calvo ele era e milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode por os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê". Tudo está dito. Tudo é infinito.
Mais fotos aqui e aqui.
Vídeo.
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